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quarta-feira, 9 de junho de 2010


Rio Branco sob um olhar de História da Arte
Por Natália Jung


Parque da Maternidade, Usina de Artes João Donato, arborização urbana, índios isolados, Biblioteca da Floresta e História da Arte. Somente uma visão bem apurada para fazer uma costura com todos estes elementos.
O historiador de arte Roberto Conduru, em sua passagem por Rio Branco em dezembro de 2008, para ministrar aulas aos alunos dos quatro cursos da Usina de Artes (Teatro, Cinema, Música e Artes Plásticas), visitou diversos espaços na capital acreana, utilizando o que viu como elemento de discussão em suas aulas de História da Arte.
No agradável bate-papo realizado na Biblioteca da Floresta, Conduru comentou desde a influência da Arquitetura em seu trabalho até a experimentação de uma grade curricular inovadora no ensino de História da Arte, a qual foi aplicada nas 40 horas de aula com os alunos da Usina. Fez ainda observações sobre artistas como Hélio Mello e sobre a exposição Índios Isolados da Biblioteca da Floresta, instigando o sistema de arte acreano a investir nas artes visuais, sobretudo por sua diversidade e peculiaridade.
Natália: Roberto, sua formação é em Artes Plásticas mesmo?
Conduru: Não, sou graduado em Arquitetura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, mas desde a graduação eu comecei a trabalhar com História da Arte e minha pós-graduação é em História, sempre estudando História da Arte. Eu fiz mestrado na PUC do Rio e doutorado em História na Universidade Federal Fluminense.
Natália: Ah, agora eu entendi porque você sempre faz alusão a obras arquitetônicas e arquitetos.
Conduru: Os historiadores da arte, em sua maioria, falam pouco de arquitetura e eu falo um pouco mais. Já trabalhei muito tempo como historiador da arquitetura de maneira específica. Já estudei as obras de alguns arquitetos. É curioso porque eu tenho um livro sobre Álvaro Vital Brazil, filho de Vital Brazil, que fez os pousos para os trabalhadores que vieram do nordeste para a Amazônia, durante a segunda Guerra Mundial; são projetos bem interessantes de abrigos temporários. Eu sempre estudo arquitetura, por conta da formação como arquiteto, enquanto os demais historiadores da arte não olham muito para a arquitetura. Desde que cheguei em Rio Branco, quis conhecer a cidade, ver os espaços, os edifícios. E aqui tem um movimento interessante. Por exemplo, o Parque da Maternidade é bem interessante, pois insere outro princípio dentro da cidade, vai transformando a presença do verde na cidade. É interessante também se comparado a outras experiências urbanas no Brasil, porque você pode vinculá-lo a outros projetos de parques urbanos no país, mas ele me pareceu muito especial no sentido de que pode vir a transformar o seu entorno e não só ser uma ilha verde dentro da cidade. Porque a cidade me pareceu muito árida, pouco arborizada. Este Parque e as praças atualmente em transformação configuram um processo de mudança evidente. Eu presenciei a reabertura de uma praça que estava fechada em frente à Biblioteca Municipal. Você percebe que há um processo de rearborização da cidade. Eu imagino que o Parque vai agir sobre os espaços que ele conecta. E é interessante contrapor a curva do canal ao desenho da malha urbana, formas com tempos diferenciados. Enquanto a malha urbana é árida, o canal está se arborizando. Então daqui a cinco, dez, vinte anos, o Parque vai ser outra mancha verde e eu espero que a cidade também seja, por conta do Parque e das praças; espero que ela se transforme. É interessante ver a cidade construindo marcos como esta Biblioteca da Floresta, a Catedral, as pontes. Três pontes tão próximas, achei tão curioso isso.
Natália: E tem ainda uma outra ponte, que é conhecida como “terceira ponte” e foi construída antes da ponte de pedestres, ela fica mais afastada.
Conduru: A própria Usina de Artes é um marco arquitetônico muito interessante. Aquele é um bom projeto de transformação do edifício de uma usina de processamento de castanha em uma escola de arte, que não é uma escola e sim uma usina de arte. O nome é bem pertinente para o que a instituição quer ser e é: uma usina, uma instituição transformadora. A participação neste projeto tem sido muito instigante para mim desde o início. Fui convidado para participar de uma ação inovadora, não só por estar em Rio Branco, no Acre, mas mesmo em termos de Brasil. Para mim é uma experiência muito nova dar aula para estudantes de cursos de teatro, música, cinema, porque na minha experiência eu dei aula de História da Arte para arquitetos, artistas, historiadores da arte e professores de arte; ou seja, no mundo das artes visuais. Por mais que seja um curso de história das artes visuais, o fato de os estudantes serem variados e as turmas heterogêneas é muito interessante.
Natália: Foi o Roberto Bürgel quem te convidou?
Conduru: Foi o João das Neves. Mas na verdade todos eles, a Clarisse, o Bürgel, todos eles foram conversando, discutindo comigo o programa do curso, as idéias. Quem me indicou foi Lélia Coelho Frota, crítica de arte que é membro da Associação Brasileira de Críticos de Arte e tem um trabalho enorme, atua com arte popular e arte contemporânea, mas também tem uma visão ampla, aberta, dirigiu há algum tempo o Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular. Enfim, ela me indicou para este trabalho e, depois, a equipe da Usina detalhou comigo o curso, me explicando a idéia da Usina, afinando a proposta do curso. Foi um trabalho muito bem cuidado, nos detalhes, e tinham me avisado da heterogeneidade das turmas, a diferença de idades, de crianças a idosos, com pessoas de origens geográficas e sociais variadas, com formações educacionais e culturais bem diversas. Então eu vim preparado para esta heterogeneidade, eu sabia que ia encontrar isso e este era um ponto que me atraia na proposta. Vários pontos me atraiam: conhecer o Acre, Rio Branco, a Usina de Arte. E neste curso eu também estou experimentando uma nova metodologia. No Departamento de Teoria e História da Arte, onde eu trabalho na UERJ, nós temos feito algumas reformas curriculares e, na mais recente, estamos discutindo os conteúdos das disciplinas de História da Arte, pretendendo renovar a visão, pra não fazer uma visão linear, cronológica, eurocêntrica. Propomos entradas conceituais que são estas que eu estou experimentando aqui pela primeira vez em curso. Na UERJ, estamos desenvolvendo um livro, financiado pela FAPERJ, a partir desta conceituação. Lá, no próximo semestre, devemos começar o curso de graduação com esta grade conceitual. E quando eu recebi o convite, eu achei que era uma boa oportunidade de experimentá-la, de me experimentar. Eu acho que, para isto, foi importante o sentido experimental da Usina. Eu estou gostando muito. E acho que o lugar onde fica a Usina, um pouco afastado da cidade, é bom. Para uma escola de arte é bom ficar um tanto, não de todo, mas um tanto isolada da cidade. Ela não é propriamente isolada por que está próxima de alguns bairros, mas ela tem uma situação especial e isto é bom. E a arquitetura lá é muito interessante, acho que o projeto foi muito feliz; os espaços são bem transparentes, tanto os da administração, quanto as salas de aula, a cantina, o restaurante; tudo muito agradável.
Natália: E destas duas semanas de aula na Usina, o que você já tem concluído sobre sua experimentação, sobre a aplicação desta metodologia e sobre os alunos?
Conduru: Sobre esta experimentação, esta grade conceitual, pois ela não chega a ser uma metodologia, isso é importante frisar, a nossa idéia é que a partir dessas entradas, desses tópicos – arte e cultura material; arte, pensamento e forma; arte e religião; arte e política; arte e vitalidade; arte e sistema de arte – os professores possam pensar a arte, observando-a em diferentes contextos. Então o modo como cada um vai fazer isso pode variar; a idéia chave é essa liberdade. Não é uma camisa-de-força de uma linha do tempo homogênea e linear, centrada em alguns lugares nos quais os demais são sempre os outros, as margens. Então eu achei bom, porque o público daqui, um grupo bem heterogêneo de estudantes, entrou na proposta, a compreendeu, sem problemas. Então, para mim, este é um dado importante, porque as pessoas sempre supõem que é preciso primeiro ter uma formação linear para depois fazer uma entrada conceitual. A verdade é que todos têm diferenças e sempre, seja na entrada linear ou nessa grade conceitual, as pessoas têm lacunas, zonas que elas conhecem mais, ou menos. O que me deixava mais curioso era ver em que medida essa grade conceitual funcionaria com pessoas que, supostamente, têm poucas referências de arte. No que diz respeito aos estudantes, estas duas semanas me mostraram que eles são muito interessados, uns têm carências, outros não. Também antes de eu vir, me disseram que eu encontraria pessoas de outras regiões do Brasil e até mesmo daqui que têm quadros de referência, repertórios, conceitos bem estruturados. E isso é um fato. Mas a turma era desigual e isso foi bom, porque uns puxaram os outros e até quem sabe pouco do que está sendo discutido fez perguntas muitos importantes, básicas, fundamentais. Às vezes, quem já se considera um pouco adiante não se coloca perguntas fundamentais. Então esta heterogeneidade funcionou bem em conexão com esta grade conceitual. Além disso, muitos estudantes me chamaram para ver seus trabalhos, falaram o que têm feito na escola, traziam, de um dia para o outro, reflexões, estudos, livros. Eu senti, por um lado, às vezes, carências, carências de repertórios, de conceitos, mas também senti uma grande dedicação, uma grande sede, uma enorme vontade de conhecer. E, nos que têm mais referências, abertura para se aperfeiçoar, se aprofundar, pensar outras questões. Então minha avaliação destas duas semanas é muito boa.
Acho que este é o clima da Usina; lá, os estudantes têm sido instigados a pensar. Os testemunhos são muito interessantes, toda hora eles falam: “ah, eu pensava a arte desta maneira e agora eu penso diferente”, “o curso me ajudou a mudar disso para aquilo”. Então minha avaliação sobre essas duas semanas é muito positiva, muito mesmo. Mas eu acho que eles precisam ver mais. Isto é um dado das artes visuais. Quando eu digo ver, eu digo experimentar diretamente as obras. E isto é complicado, porque o sistema de artes é hoje muito exagerado, com custos muito inflacionados. Mas acho que seria importante uma política de exibição pública aqui, para formação de público e aprimoramento desses artistas e estudantes. Salvo desconhecimento meu, aqui não há um museu de arte. Tem uma cultura a fomentar, uma cultura que é muito diversificada, e ao mesmo tempo muito ciosa da cultura local. As pessoas nas ruas e em vários locais fazem questão de reafirmar a originalidade do Acre na federação brasileira, da história do Acre em relação às histórias dos demais estados.
Mas isso não é algo fechado, excludente. Há este orgulho, esta consciência, mas há também uma vontade de conexão e, como era de esperar, uma conexão internacional, dada a situação de fronteira do estado e de fronteira com uma região que o Brasil de modo geral olha muito pouco, que é a América Latina. Então há uma abertura, uma receptividade boa. Esses sinais eu vejo na Biblioteca, na Usina de Arte. Do meu ponto de vista, a partir do campo que eu trabalho, faltam ações em artes visuais. Não que a Usina não seja. Ela é. Ela expõe. Mas eu penso para além disso. Por exemplo, a Usina está conectada ao Teatro Plácido de Castro, tem apresentado espetáculos de teatro, de música. Mas, seguindo essa dinâmica, poderia haver exposições com formação de acervo. Por exemplo, a obra do Hélio Mello, que eu reencontrei aqui, naturalmente emergiu nas aulas, assim como as de outros artistas daqui. Ela merecia estar exposta publicamente. Com certeza é um valor. Se a causa da preservação ambiental é tão forte aqui, é muito interessante que um grande artista daqui, com uma obra singularíssima, também tenha se dedicado à preservação de valores da cultura local. E eu a vi pouco, gostaria de ter visto mais e seria importante ver mais. Seria bom ter um museu mais contemporâneo, com a própria arte dos índios. Outro exemplo: a atual exposição desta Biblioteca. Depois de vê-la, eu acabei tratando nas aulas sobre as flechas e arcos apresentados na exposição dos índios isolados dentro de uma visão de História da Arte, do ponto de vista artístico. Foi natural.
Os estudantes trouxeram-na para o debate e eu procurei instigá-los a uma reflexão sobre os valores daqui. Eles me disseram para ver a exposição, eu vim ver e acabei comentando com eles. Com elas se discutiu arte e cultura material, arte e religião, arte e poder, arte, pensamento e forma. Tudo isso pode ser abordado em relação a essas flechas, aos tecidos Kaxinawá, ao Hélio Mello. Então eu acho que seria interessante oferecer pra quem mora aqui, pra quem vem de fora, para todos, enfim, uma instituição com um acervo interessante. E ainda dá tempo de montar isso, de produzir uma coleção, um museu, segundo conceituação e linguagem contemporâneas. Porque as exposições que eu vi aqui têm isso e, portanto, se vê que é possível fazer mais, ir além. Não necessariamente na Biblioteca. A Biblioteca tem outro sentido. Já é muito interessante esta Biblioteca ter um perfil de centro cultural, com exposições, entre outras atividades. E eu acho que essas exposições deveriam viajar para outras regiões do Brasil; esta exposição dos Índios Isolados deveria migrar pelo Brasil, para que se tenha mais consciência, em outros lugares, do que é tão forte quando se chega aqui e toma consciência do alheamento dessas questões por parte de outras regiões do Brasil.